quarta-feira, 14 de março de 2012

A guerreira, a espada, monstros e umas lembranças...

Me lembro da sensação...
Quando todos se deitavam e me deixavam para trás... As vezes eu pensava em ficar acordada até amanhecer e eu finalmente estar segura, para me levantar do sofá e correr para a cama...
Sem monstros...
Fantasmas...
Demônios.
Toda noite em que isso acontecia, era um desafio... E confesso... Nunca estive pronta para eles...
...
Atravessar a sala. 
O corredor. 
Abrir a porta do meu quarto. 
Dar-me de frente com um espelho de corpo inteiro no escuro. 
Correr com o coração acelerado para a cama. 
Ficar embaixo das cobertas... 
O meu lugar seguro.
AINDA, sem a certeza de que realmente estaria segura, levar a mão a cabeceira da cama, sem tirar a cabeça debaixo da coberta, apalpar o ar...
A cabeceira... 
E o medo...
Medo de esbarrar a mão em outra mão fria, de textura envelhecida, talvez "gosmenta" e unhas grandes escuras e sujas (talvez com o sangue de outra criança), que me rasgaria se me encontrasse ali, respirando lenta e suavemente para que não me ouvissem também.
Sorte a minha ou não, o que eu encontrava era um terço...
Deixado alí, todas as manhãs na cabeceira da cama, pronto para ser empunhado, todas as minhas noites... Me defendendo desses e de tantos outros medos da minha mente infantil e aterrorizada, pelos monstros que só vinham na calada da noite.
...
Tudo até então, estava cautelosamente bem...
Eu era ágil o bastante para correr o mais veloz que pudesse e escorregar jogando as chinelas para trás, que com sorte acertariam a cabeça de um deles (monstros) e retardaria sua caçada a mim... Me possibilitando assim, chegar ao meu esconderijo...
Os meus quase oito anos de experiência (e de vida!), haviam me ensinado que era mais seguro, deixar a cama no jeito de entrar dentro das cobertas. Então, sempre arrumava a cama, quando começava a escurecer e deixava a minha ponta de entrada um pouco mais aberta, para que eu não perdesse tempo...
A TÁTICA sugeria que, em caso de algum escorregão a noite, tropeço ou contratempo qualquer, ganharia tempo não precisando levantar a coberta para me colocar dentro dela... E dava certo!
...
Tudo até então, estava cautelosamente bem...
E a medida que o tempo passava, a minha agilidade em não ser pega pelos monstros da calada da noite, já devia ter se espalhado entre eles (monstros).
Aos poucos fui deixando de ouvir seus passos, a respiração ofegante atrás de mim, o bafo de sangue podre que soprava na minha orelha, o tato gelado, mórbido e o beijo cru que se instalava como sinal de que seria sua próxima vítima.
Mas um dia... Sob as ordens de minha mãe, subi a tarde para arrumar o quarto, trocar os lençóis, limpar a cabeceira...
Limpei meu quarto, deixando-o reluzente. 
E tudo teria sido perfeito se eu não tivesse tirado o terço da cabeceira...
Um descuido... 
Um deslize... 
E vi o terço cair... Conta a conta, se espalhar por todo o chão, ao que meu desespero se espalhava também, em igual...
Olhei para trás e pareci ver a porta ser fechada atrás de mim...
Ouvi as suas vozes em todas as direções...
Vultos íam e vinham na minha direção... 
Corri para a porta, mas seu trinco não cedia. Ao que uma mão escorregou até mim e me vi encostar em um objeto sólido: "O ESPELHO!"
A mão que me alcançava não cedia... Eu não sabia implorar e fechar os olhos só me fazia ver o que eu não era capaz de ver de olhos abertos.
Não bastasse... Alguém no espelho me abraçava... Meio abraço de sucuri tentando quebrar a vítima para engolir...
Gritei! Gritei! Gritava!!
Quando a mão me alcançara, dedos longos, convidando-me para seu dono...
Suspirei e caí desacordada...
...
... ...
... ... ...
... ... ... ... Ana...?
Ana? Filha, acorda... Ana... Filha, que aconteceu?
Hã... Mamãe...? Hãm...
...
... ...
... ... ...
Olhar para ela... Reconhecer seu rosto... Apalpá-lo... Sentí-lo... Um rosto conhecido!
E nas mãos, outro terço...
Ela me abraçou... Afagou meu cabelo... Segurou minha mão na sua e o terço... Rezamos.
Os monstros fugiram aterrorizados!
"Está tudo bem... Calma filha... Passou... Estou aqui."
... ... ...
... ...
...
Mamãe, sabia?!
Até hoje me pergunto... 
Nunca saberei...
Imagino apenas, que ela também tenha lutado com seus monstros... Talvez nunca saiba, venha a desvendar os meus... E levaremos isso de geração em geração...
Aos meus filhos... E aos filhos dos meus filhos... E aos filhos, dos filhos, dos meus filhos... E aos...
...
... ...
... ... ...
... ...
...
Depois, pedi que ela ficasse comigo até eu recolher as bolinhas do meu terço.
Ela ficou, sem me perguntar nada... ELA FICOU!
Quando recolhi tudo, olhei para as minhas mãos...
MINHA ESPADA DESPEDAÇADA!
Mamãe se aproximou, recolheu minhas contas uma a uma, guardou no bolso do avental, desenrolou o terço das suas mãos e enrolou nas minhas...
Que GESTO!
Só um guerreiro muito honrado, para se desfazer da sua espada por outro...
"Pode ficar com esse... Mas não deixe estragar, tudo bem?"
Acenei que sim...
Levantamo-nos e saímos!
E tudo ficou bem...
Aquela imagem de mamãe guerreira, nunca mais sairia da minha mente!
...
Mas confesso que em noites vindouras, fui dormir no quarto dela...
Nunca se sabe... Com mamãe desarmada, tendo enfrentado todos os meus monstros, o que estes seriam capazes de fazer com ela...
Decidida... Eu seria tão honrada quanto ela e dali em diante a protegeria, para que mal nenhum, mal lhe fizesse... 

Valsa

Não gosto quando ela se aproxima assim... Mas sempre a recebo... Mesmo que não tenha vindo dessa vez a minha casa, parece que ela faz que...