sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

Valsa

Não gosto quando ela se aproxima assim... Mas sempre a recebo...
Mesmo que não tenha vindo dessa vez a minha casa, parece que ela faz questão de mostrar que veio!
Vai chegando, com a sua palidez e frieza próprias, esticando seus dedinhos lamuriosos para roubar sopros de vida e deixar em seu lugar ramalhetes de questões que jamais poderão ser respondidas.
Quem fica, sempre arruma desculpas, justificativas, que nunca serão plenas!
E sempre que você vem, voltamos nosso diálogo...
Aquele, sobre um dia de visitas.
...
Lembro-me de tê-la colocado para dormir...
Lembro-me de estar tão rasgada, que era difícil respirar...
Lembro-me daquela carta... meu pedido de perdão antecipado à pessoa que jamais terei de volta.
Tomei um banho e me limpei cuidadosamente, pensando em cada parte do meu corpo que seria tocado depois, e o que comentariam.
Eu ia rindo de forma imbecil. E ainda hoje, me pergunto: "Como eu podia rir daquilo?" Então depois, untei meu corpo com o meu melhor hidratante, vesti minha roupa mais leve e caminhei até o quarto dela, mais uma vez, para sentir seu cheirinho de inocência... de uma longa vida, ainda a ser vivida...
Dei-lhe um beijo longo e demorado na testa e fui abençoando-a e implorando à Deus, que a livrasse da minha maldição... 
Enfim, coloquei a carta embaixo das suas cobertinhas... E me dei conta do que faria.
Saí do quarto e deixei a porta entreaberta...
Olhei no relógio e ele acusava a hora da chegada do meu algoz... aquele sombrio que vinha lascando minha alma dia após dia, roubando todos os meus significados e assim me reduzindo a minha insignificância.
Alguns chamariam de ato de covardia... eu não! Não naquele momento...
Já havia perdido tanto àquela altura, mas ainda me sobrava alguns resquícios de alma e por estúpido que pareça, meu único desejo era o de não permitir que aqueles retalhos de mim, me fossem tirados... eram meus! Isso e tudo de mim, que ele ainda não conseguia tirar.
...
Então, minha amiga... Lembro que ao olhar o tempo, senti seu cheiro... E enquanto eu seguia no corredor, rumo a sala, sua frieza começou a se apoderar de mim, me paralisando, me roubando as articulações, de forma, que pareço ter sido carregada por você, até o parapeito da janela.
Quando eu olhei lá fora, não vi nada além de um grande pátio vazio, e embora fosse um lugar movimentado, estava tudo vazio!
Tudo!
Inclusive eu... e sobre isso, nunca saberei se foi você, me dando a cegueira e o silêncio ensurdecedor daquele momento.
Lembro de passar a mão sobre o rosto e sentir as minhas bochechas gélidas molhadas, além da minha respiração estranhamente bufante e quente...
Eu não queria!! Mas você me puxava e me empurrava! Então valsamos sobre aquele espaço atemporal... Sobre o tempo, então, valsávamos eu e a Morte!
Lembrei do meu sonho... O grande pátio de espelhos, eu, no me vestido escarlate, bêbada pelos teus trejeitos, sendo tocada e beijada por você, sujeita sem rosto, ladra de sonhos, cheirando a barganha...
Valsamos, rodopiamos todo aquele salão, até você me girar, girar e me soltar maltrapilha de novo no parapeito daquela janela e me pedir friamente todo o meu futuro... Todos os meus suspiros, risos...
Você, me pressionava com seu espírito gélido, então ousei tentar um primeiro passo... e vi meus pés pálidos... tão frios que dava para ver minhas unhas levemente azuladas...
Fechei meus olhos!
Eu estava pronta...
Pendi o corpo para frente ainda segurando a janela e ia obedecendo a senhoria, quando ecoou rasgado naquele cenário, um choro escandaloso, forte e imponente, que até a ti desequilibrou.
E voltei a ouvir os sons do andar de cima... Voltei a sentir o calor que não sentia ali.
Vi seu desespero, pelo medo da sua perda! Você dançou na minha frente, como uma dama fracassada, uma cafetina falida que acabava de perder um grande negócio... Você não teria a minha alma!
O choro rompeu tudo e veio acompanhado de um cheiro forte de rosas que me suspendeu e devolveu ao chão na pancada mais feliz que havia tomado nos últimos dias.
Retomei as rédeas do meu ato!
"Eu precisava viver, não mais por mim, mas por ela!"
Corri então para o quarto e a tomei nos braços, pondo meu seio na sua boca e alimentando-a não apenas com meu leite, mas com o que eu era, com o que eu podia ser, para permitir que ela fosse alguém melhor do que eu havia me tornado.
Não demorou muito, meu algoz chegou... E como rotina, voltei para o tronco...
Fui feliz! O choro rompido no tempo, me deu um objetivo rasgando a mortalha que vossa senhoria tecia para mim, dia após dia, naquele contrato entre você e ele...
Dias depois, saí do meu cativeiro... E não foi fácil aprender a andar de novo... Palpar as coisas e distinguir o real, do imaginário...
Tão acostumada as ofensas, custei a entender a diferença do peso das mãos e seus abundantes significados. Mas consegui!
E agora, estamos aqui...
E não é que de vez em quando, recebo tuas visitas?
Não tenho raiva de ti...
Nos sentamos nessa varanda e discutimos todas as sensações que te rodeiam... E te acho pobre, por viver teus longos e infindáveis dias, da finitude dos outros.
Mas bem, ainda não é a hora e até lá sei que dialogaremos muito, valsaremos e voltaremos cada uma a sua atividade diária, até o dia em que finalmente daremos as mãos...
Peço-te apenas, permita-me a paz de uma vida bem vivida...
Dessa forma, quando vieres, permitirei que vague-es meus olhos e os recubra com tua penumbra, abrasando-me o leve sorriso, que ficará para sempre, de todas as almas que atravessaste, em tua vil memória.

Valsa

Não gosto quando ela se aproxima assim... Mas sempre a recebo... Mesmo que não tenha vindo dessa vez a minha casa, parece que ela faz que...