quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Sobre um burro, um sabiá, agouros e um exemplo de amor pra ser seguido até a morte...

Até então, tudo bem...
Eu não conhecia a história na versão dela e toda história de viúva parecia ser sempre a mesma.
As lágrimas...
Os últimos dias...
Os suspiros...
Enfim, tudo que ela tinha que ser, mas resolveu fugir as regras.
Eu me sentei para ouví-la e ela dizia.
- Sabe... Não tenho motivos para chorar... Eu o amava e fomos felizes.
Ainda sinto ele comigo, na outra casa sabe? E por isso não sei quando volto para cá. Acho melhor assim...
- Não tive tempo de conversar com você depois daquele dia... Mal lhe pergunte... Como tudo aconteceu?
- Então... Foi a coisa mais interessante... Senti que Deus o levava de mim...
...
Ele estava feliz. Muito feliz.
...
Na semana em que partiu... Ele estava muito feliz... Estávamos de mudança para a casa do lado... Pela primeira vez era nosso terreno e ele me dizia: "Olha Maria, ninguém poderá falar mais nada. Essa é nossa casa!".
Nós mesmos estávamos fazendo a mudança. Dias antes... Tivemos problemas com o contrato, pois o dono da casa onde morávamos queria que tudo dentro da casa, incluindo nossas coisas ficasse para ele... Recusamos de imediato, mas aquilo deixou o Altino com muita raiva e ele então começou a se recusar a sair de casa, com medo de que o dono da casa viesse e levasse nossas coisas.
Com muito custo, consegui fazê-lo vir comigo para a cidade a casa da nossa filha, para comemorarmos o aniversário dela.
Passamos a tarde inteira aqui. Fomos a igreja e ele estava muito entusiasmado, chegou a dizer: "Hoje, ouvi uma palavra que alegrou a minha alma. Estou realmente feliz Maria!" Isso ele repetiu durante todo o nosso retorno.
Chegamos em casa e fomos dormir já cansados. Quando ainda estávamos no primeiro sono, ouvímos os nossos cachorros e os cachorros dos vizinhos começarem a latir ferozmente. Então nos levantamos e pensamos ser alguém a mando do dono da casa entrando no barracão onde ainda estavam muitas das nossas coisas para tomar o que era nosso.
Antônio quis ir lá fora, mas eu estava atenta e notei que os cachorros avançavam em outra direção. Chamei a atenção dele e juntos caminhamos para a porta da sala.
Quando a abrimos, vimos andando sobre a nossa calçada um burro. Passava devagar na frente do nosso portão mexendo as duas orelhas para frente e para trás. De um salto, corremos para o portão, mas ao chegar lá, não vimos nada.
Bobo como era, Altino me olhou e caiu na gargalhada. Pouco importava a ele, mas algo gelou dentro de mim. Minha mãe sempre dizia que essas visões não eram coisa boa...
- O povo diz que é superstição mas agente sabe bem que não é... Só os mais velhos mesmo para entender essas coisas... Os mais novos, não acreditam...
- Pois então, no dia antes de Deus levar ele de mim, não é de ver que entrou um sabiá na minha cozinha e ficava voando para lá e para cá e não encontrava o lugar de sair?
- É mesmo Maria?... Essas coisas são agouro... Não presta borboleta marrom e preta, beija-flor dentro de casa... Olha pra senhora ver... Na semana que o Juventino morreu, entrou uma borboleta marrom lá em casa e ficou até o dia que ele morreu... Depois da vez do Alceu e por último agora o Altino... Eu não gosto desses trem nem mesmo. Só traz o que não presta!
- E foi. Era um passarinho a coisa mais linda, entrou na minha cozinha e ficou rodeando sem dar conta de sair. Eu e Altino tentamos tocar ele com a vassoura, mas o bichinho ficou lá encima e não saía. Então nós desistimos e deixamos ele lá. Quando foi mais a noite o João Carlos passou lá em casa e nós três tentamos pôr o sabiá pra fora.
Foi aí que o Altino teve uma ideia. Ele pegou uma escada fechou as passagens e enquanto eu e o João Carlos tentávamos tocar o sabiá ele cercou ele... Pois não é de ver, que quando o Altino estendeu a mão o sabiá pousou na mão dele e ficou? Depois disso, o bichinho voou e foi cantar no pé de laranja que tem no fundo de casa. Cantou e depois sumiu.
Eu fiquei preocupada, mas não quis falar nada se não ele ía rir de mim.
- Homem, não dá atenção pra essas coisas né Maria? Eu sei como é...
- Então, no dia que ele morreu, parece que eu estava adivinhando. Levantei cedo e fui lavar roupas, coisa que faço na sexta e ainda era quarta. Eu sei que fui lavar roupa e ajudar ele a trazer nossas coisas para nossa casa. Ele sempre me dizendo que estava muito feliz, porque se sentia bem naquela casa e porque depois de uma vida inteira de luta, ERA NOSSA!
...
Eu fiz o almoço. Nós almoçamos. Servi a ele suco e doce, como ele gostava. Ele se encostou no sofá para descansar e eu fui terminar de estender as roupas e colocar comida para os cachorros. Quando voltei ele me deu uma bronca: "Ora mulher! Você nunca descansa? Senta aqui perto do seu velho, pelo menos para fazer o kilo." Então obedeci me sentei e ele me mandou esticar as pernas que estavam inchadas para ele massagear... Devo dizer... Ele era muito carinhoso e se preocupava muito comigo...
- Seu marido era um bom homem...
- Aí fícamos alí conversando por horas... E ele falando contando as gaiofas dele... Ele estava sorrindo e resolvi tirar uma foto com o celular, mas a memória estava cheia... Se eu tivesse conseguido salvar vocês veriam como ele estava feliz... Então ele me perguntou quantas horas eram para que pudéssemos voltar a organizar as coisas...
Eu me levantei e ele me disse: "Maria... Me deu uma tontura..." Foi a última coisa que ele me disse... Então segurei ele nos braços e ouvi ele roncar.
Fiquei desesperada, chamei o vizinho e ele me pediu para pegar os documentos dele. Quando voltei eles o haviam colocado no carro. Fomos para o hospital e eu já sabia o que havia acontecido. Fui medicada, minha pressão havia subido demais e nenhum remédio fazia ela abaixar.
O João Carlos chegou, decidimos trazê-lo para ser velado na cidade, porque ele queria voltar para cá e eu quis realizar seu último pedido...
Durante o velório queriam que me internar, porque a pressão estava muito alta. Decidi ficar... Eu sabia que não teria outra chance. Bobeira... Ele não estava mais lá... Mas eu queria fingir que estava, como esteve uma vida inteira comigo...
- É difícil Maria... Difícil... Mas acho que você tinha que voltar para cá...
- Eu vou voltar, mas não por agora... Quando estou na outra casa, tenho a impressão de que ele ainda está lá, me esperando, sorrindo para mim... Se eu venho... Tenho a impressão de que estou deixando ele lá...
...
Mas estou bem... E sei que ele também está... Sinto no meu coração.
- E ele está Maria... Ele está...

Valsa

Não gosto quando ela se aproxima assim... Mas sempre a recebo... Mesmo que não tenha vindo dessa vez a minha casa, parece que ela faz que...