Tanta coisa aconteceu desde então...
Sabe
de uma coisa? Eu não sei nomear bem o que estou sentindo agora... Não há
palavras suficientes... Será que já houveram?
Todos
os dias escrevendo, para saber então, que nada me seria inteiramente tão
suficiente, capaz de sanar tudo, tudo...
Um
nó se desfaz e tarde ou não outro já está pronto para ser desatado. O que muda
nessa história? Bem... É que agora a escrevo! E sou tão feliz na minha escrita.
Um tiro pela culatra talvez, mas, nunca um erro...
É
demais, chamar de erro, as tentativas, as frustrações necessárias que me
constituíram como ser... Me registraram...
E
porque tanta reticência? Bem... Nada, nunca se acaba...
Não era bom... Eu não
gostava... Não era meu e nem lá eu pertencia...
Era uma coisa meio
edificada e sem ter como sair do constructo, fiquei presa lá dentro... Não
havia janelas e as portas só tinham trancas por fora.
Aprendi desde cedo, que
nada seria meu... Era um favor estar ali, mas não era um favor meu... Quem me
concedia um canto, nem se quer via quando eu me derretia pelos cantos.
As vezes, era passível
um sonho de liberdade...
Quando eu ia pra sua
casa, tudo era mais fácil. Eu tive lares provisórios em cada fim de semana, que
me permitiam meus donos, ir pra lá. Ai sim, eu tinha um lar.
Quem se importa com o
que sente a cinderela? Quem se importa se os seus maltrapilhos são causa sua ou
causa de outrem... Quem quer saber, se ela quer voltar ou quer ficar? Voltar
pra onde? Para a coisa edificada e sem janelas, com portas com trancas de fora...
Eu cresci assim... Em um
lar que nunca foi meu! Fui construindo entre as paredes forçadamente erguidas
ao meu redor, o meu próprio lar de imaginação. Eu nunca soube se era viva a
agonia que me inventara!
Ai infância sombria...
Bem quisera, saber um dia se fui criança... Tão cedo a vida me mostrara a sua
face... Julguei muitas vezes, ser eu e não o outro a usar uma máscara... Usei,
e nem fiz conta de porque a usava... De certo, me protegia, vigiava, dava o tom
da oração, tirava o cinza da minha sombra e punha nas paredes da casa... Da
casa! Não do meu lar... Esse que era meu fruto e só eu desenhava... Era meu e
eu o amava... E odiava sentir seu doce e de repente... De repente não o
tinha... Um passeio pela sanidade... Distorção extensa e profunda do rosto no
espelho... Eu não queria mais que fosse o meu...
A dona da casa, diga-se
de passagem, minha dona, andava pela casa espalhando sua insensatez nos muros,
nas paredes, nos móveis... Mais cinza, mais cinza... Esfregava, limpava,
lustrava, tingia tudo... Quis tingir a menina morena, roubou-lhe o sorriso...
Tirou-lhe os esmaltes das unhas, o batom dos lábios, a cor dos cachos... Fez a
menina ficar pequena... Pôs a menina na corda bamba...
Eu vi tudo! Que
covardia... Aquilo me doía...
E quando saia da casa,
munida com um par velho de sapatilhas de ponta... E quando as calçava... E quando
subia no palco... E quando deixava os gritos da megera para trás... Nem era eu,
quem era a bailarina cintilante rodopiando no palco... Vez era de uma camponesa
insossa que morria de amores ou uma fada pequena que nem poder direito tinha...
E ainda podia ser apenas aquela dor exprimida, que no palco tremia nas pernas,
exalava nos braços... Pulsava no amargo gesto da bailarina, que só existia,
quando lhe era possível calçar as velhas sapatilhas de ponta.
Eu cresci assim... E
voltando ao lar que eu tinha... Não era meu aquilo que pensei que me
pertencia...
Um dia a fada madrinha
precisou sair de campo... Trancaram-me as portas! Rapunzel teve mais sorte...
Ela podia jogar as tranças! Eu não... De tão fraca que me diziam que eu era,
comecei a comprar a ideia... E de medo de ver meus sonhos espetados nas
roseiras... Eu não optava muito em jogar as tranças...
Fui morrendo todo dia...
Eu falava... Eu gritava... E quando me punham da porta para fora, eu não sabia
pensar diferente: “Que mal fiz eu a este
mundo, para que ele me queira tão mal?” No fim, ou bem depois do fim,
descobri que era sua doença.
O medo absurdo de que eu
não houvesse me esquecido seu segredo... A incapacidade de aceitar, que no fim
das contas, era muito mais meu refém... Difícil olhar para mim todos os dias...
Talvez eu fosse o pesadelo manifesto de sua culpa... Odiar-me era sua forma de proteger,
de justificar a coisa...
Nunca saberei! As vezes,
me pego perguntando se é necessário saber... Desejava muito mais, que de uma
vez por todas, lhe carregasse a morte...
Essa por fim, tanto
fez... Tanto brincou... E quando veio, saiu deixando para trás uns pedaços...
Umas lembranças... Serviço mal feito, o serviço da morte...
Então, sem ter quem
segurasse a corda, a menina morena caiu... E a dona da casa, nem viva e nem
morta, largou vassoura e buchas no chão e assombrou a casa, com o que a morte
havia deixado ao recolher o carrasco. Vestiu a carapaça do soldado e repetiu
generosa e fielmente o discurso do suposto morto...
E viva o soldado! E viva
a dona! E viva a menina morena, que numa casa sem janelas e com portas com
trancas de fora, souberam inventar meio que as tortas o que para eles, era um
lar...
Já a outra... Essa ainda
vai ter que crescer mais, para descobrir em pouco tempo o que é um lar... E dar
ao fruto no seu ventre gerado, a chance de ter mais que uma casa... A chance de
crescer em um lar... Sem se importar com as medidas... Essas não importam...
E se tudo der certo...
Ela ainda pode contar essa história... Com menos figuras de linguagem... Mais
força na entonação e a certeza de que embora tenham lhe dado casa, a muito
mais, do que cimento e tijolos na construção de um lar...
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