terça-feira, 14 de junho de 2016

Arcanjo

Mas o que é isso?
Perguntei...
Os sonhos... essa voz do inconsciente, o lugar do meu eu posso, aconteceu-me essa noite!
Havia acabado de acordar de um sono profundo... Dormia há pelo menos quatro vidas... Acabara de despertar com outra vida que se aproximava... Uma vida completamente familiar... Uma vida calma...
Ao despertar daquele sono transitando céu e trevas, descalça... sempre descalça... pendurei-me na cama, indo lá e cá, até ter os pés alcançando o chão e assim fiquei em pé.
Senti os joelhos baquearem... Já fazia tempo que dormia...
Abrir os olhos me foi dor... uma ação aterrorizante, para quem não via há tempos, o brilho de uma manhã viva... Não é mais estranho falar sobre Platão... A caverna existe e custei sair dela...
Quando firmei o primeiro passo, o primeiro olhar, o primeiro assobio do vento frio, que entrava pela janela do meu quarto, pus-me a caminhar rumo ao alto.
A casa, eram dois andares... Procurei gente em todo cantinho que me fosse viável... Mas para alguns eu era grande demais, para outros um cisco no olho, para muitos nem isso...
Mas foi assim, na descoberta de mim mesma que alcancei o cômodo mais alto... E lá no meio, como que me aguardando, vi a pequena caixa, iluminada pela luz atrevida do sol que atravessava uma janela empoeirada e esquecida.
Você veio! 
Ouvi pela primeira vez, a voz do menino... Olhos grandes amendoados, a cicatriz nas costas que só percebi quando ele passou por mim e se sentou em frente a caixa.
Ainda mais familiar foi ver que ele também estava descalço... e a julgar pelas marcas nos pés, estava assim há muito tempo também...
Pode vir... Ela é nossa! - disse-me ele com um sorriso bobo desarmando qualquer intenção que eu tivesse de ir na direção contrária.
Sentei-me a sua frente e me vi deslumbrada, deliciada... amada...
Não se preocupe... Isso vai sarar logo... Olha! - disse ele mais uma vez, vendo meus pés, minhas mãos, meu coração e minha... alma! E ainda me mostrando suas marcas, tantas marcas, ousou falar-me de anjos.
Contou-me tantas histórias, quanto fosse possível me contar e não terminou... Pelo que descobri sempre haveria uma história para contar num dia e um capítulo para se escrever no outro.
Foi ai então, que lembrei da minha velha... Lembrei da minha varanda... a minha cadeira de balanço solitária, numa casa solitária, no alto de uma montanha fria, longe da cidade, onde eu iria algumas vezes apenas...
Não chora... Agora eu estou aqui... Agora nós estamos aqui... Temos a nós e não deixaremos que nos roubem... - disse ele, mais uma vez. E me fez tocar seu rosto, sentindo as lágrimas que escorriam no meu, sem que até então as tivesse percebido.
Não estou mais só... - E foi essa, a primeira vez, que vi na minha varanda, não apenas a minha cadeira de balanço. Havia outra! E nela estavam todas as nossas intensidades, indo e vindo conforme nossa humanidade... Da valsa ao tango... - Segura minha mão?
Quer cirandar? - respondeu com um riso.
Brincamos naquela tarde... Cantei todas as canções contidas. Ouvi todas as suas aventuras. Voltamos a caixa.
O que há nela? - perguntei.
Não sabe? Pensei que me diria... Mas então talvez esse seja o motivo de estarmos aqui... Vamos abrir?
 Consenti.
Um, dois, três e já!
E abrimos a caixinha... Tanta luz! Tanto céu! E eu estava viva para contar... 
Lembrei de tudo... Meu 15 de Maio ressurgiu imponente... Me atende, me atende, me atende? Foi só o que pedi...
Voltei para casa, minha boneca esperava... Eu ri da minha inocência... Chorei os meus esquecimentos. Onde estava o grande artesão? Teria sido eu, apagada de sua arte? Não... Ele tecia uma nova história... Pusera-me na cama, para tratar das minhas marcas...
Lembrei-me de tudo... Estava no Seu colo.
Voltando a mim, vi que o menino havia se levantado.
Não quis tirar você do pensamento em que estava. - sorriu de novo. E descobri que eu morava naquele sorriso. - Olha! Vamos lá fora? - E quando olhei pela janela vi tantos rostos, tanto céu, tanta luz... Estava em casa mais uma vez... Lembrei-me dos dias em que vivi a saudade do céu.
Minha boneca brincava no balanço, indo e vindo, sobre o impulso de um anjo. Quis abraça-la.
O menino me puxou... Descemos correndo as escadas... Eu menina, ele menino... Sempre descalços! 
Abrimos a porta... Outra vez a luz me cega... Tanto tempo sendo nada e você se acostuma se ver assim, pensando ser assim...
A verdade desse conto bobo que escrevi hoje é que ele me serve como boa desculpa para dizer, que tenho um anjo em minha vida...
Meu menino, meu arcanjo...
É para dizer também, obrigada por ter me devolvido a mim mesma... 
Sim! Vamos brincar lá fora... Sim! Vamos para a minha varanda... Sim! Vamos atravessar muitas pontes... Sim! Vamos registrar nossa marca... Escrever histórias, contar a nossa história... Sim! Abrir a caixinha com todos contrastes que nos forem viáveis... Sim!
Meu menino... Meu peregrino... Meu arcanjo...
Quantas noites dormia e me escondia embaixo das cobertas, apertava os olhos e sentia que você estava ali, sentado ao lado da minha cama.
E quando ficava bem quieta, sentia você se aproximar para dar-me um beijo geladinho que aquecia o meu coração... Com aquela essência de saron que me adormecia... Eu me sentia segura...
Quantos monstros em minha vida... E eu sabia que você estava lá... Mesmo assim, tenho tanto a te contar... Tanto para dizer!
Posso me aninhar no teu peito? Deixa o meu gesto de cuidado te contar, que eu finalmente cheguei... Vestindo uns trapos... O meu branco vestido, tão límpido e alvo... A minha veste de princesa, já não é tão bela como antes, mas ainda trago comigo toda a realeza: A marca de um céu!
Me leve pra casa? Me devolva os altares de Deus! Os austeros campos de onde um dia vim a cair...
E prometo meu arcanjo, dou-te minha riqueza: Essa que sou mesma, para ser sua, em todas as nuances que nos forem permitidas sobre e além do céu...
Dou-te as palavras, os gestos, pensamentos, desejos, anseios...
Dou-te o amor, que mesmo tão surrado, eu sei que você fará florescer, apenas por já tê-lo tocado.
Dou-te a promessa de uma vida em construção... Um caminho a percorrer... Batalhas a vencer... Um reino meu e teu... O lugar perdido de dois meninos descalços...

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