Tudo parecia bem e fui descobrindo aos poucos que esse era o meu lugar da dor!
E tudo parecia silenciado... quase inexistente...
Mas a verdade?
A verdade é que eu havia me mudado para outro setor de mim, que me fazia acreditar que aqui, esse local, já não era mais necessário.
Quando eu saí, joguei cobertas e alguns tecidos velhos para manter a mobília limpa.
Agora, retirando os tecidos empoeirados, me deparo com essa sala de estar, quase intacta. Conservada!
Vamos lá!
Senta o doutor em sua poltrona, deito eu, na poltrona esmagadora que eu não pretendia que me acolhesse mais, e lá eu fico tão pequena, tão minúscula, a ponto de ser engolida.
- O que te traz de volta? - pergunta o doutor.
- Isso! O que sempre me traz de volta, mesmo quando não quero voltar. É esse trajeto cheio de retornos, quando se quer simplesmente ir adiante. - Enquanto respondo, percorro o tecido da poltrona com o dedo indicador de forma sutil. É instantâneo, mas cada volta é a marca de todas as voltas que me vejo dando.
- E como é querer ir adiante, deixando para trás migalhas, pedras, pistas, rastros? É adiante mesmo que desejas ir? - Era comum, que me estilhaçasse como um grande quebra-cabeça a ser montado. Precisava deixar minhas peças a vista e assim saber se eu seria capaz de montar novamente a imagem intrepida que me dispunha a ser.
Era sempre um risco... o medo de ter perdido peças ou de não ter tempo, de me reparar.
Era uma cirurgia... de novo e de novo, abrindo a mesma ferida, para arrancar pedaços de um tumor que ninguém conseguia tirar inteiro.
Era uma escrita inacabada de uma história, cuja autora nem sabia bem a quem se destinava.
- Calma doutor... puxe os trapos devagar. A pele está sensível, conter a alma em tempos voláteis é cá para nós um dos maiores desafios da minha privada humanidade. - Torci os dedos lentamente e enterrei na almofada socada na lateral da poltrona. Segurei e coloquei sobre o meu colo. Encarei notas, caneta e desabei. - Ir adiante é sempre arriscado, porque nunca sabemos onde ou o que vamos dar. Voltar ao passado, seja ele qual for, nosso ou não é encontrar-se com o conhecido, ainda que seja dolorido. É como pisar um chão de pedras e espinhos. Dói, machuca, mas você já sabe o que tem lá. Adiante eu não sei... Você sabe?
- É isso que você busca? Saber o que virá? - Soube que essa resposta era impossível, o odor do inalcansável inebriou a sala. Com pena, assim, o vi aproximar-me de mim. - Sabe quantos amanhãs, eu teci?
- Não.
- Muitos! Mas nenhum construído sob a alcunha da certeza. Usei meu passado, projetei no presente e quando cheguei no amanhã, ele era meu hoje. O tempo, existe no entrelaço... Passado, presente e futuro andam de mãos dadas. Negar a um é privar o outro de toda a sua beleza e singularidade.
- E o que fazer doutor? Essa doença que me rasga dia e noite, ata meus pés, cega meus sonhos, descontrói minhas escadas. Não é para o topo que devo lançar-me? Pois parece que estou fadada ao que fui...
- Não despreze seu passado. Abraça a criança que foi, escolha tornar-se e ser dia após dia, a senhora no futuro merece histórias relentas, chão macio para os pés cansados, tato para os olhos enfraquecidos e textura suave para a inevitável mortalha que vestirá. Dá aos mãos e segue. O chão poderá não ser o mesmo, mas os teus pés sempre o serão.
- E se lá na frente, não me encontrar comigo? E se me esquecer quem sou? Se eu souber menos do que sei hoje?
- Seja lá qual for o seu destino, se o tiver trilhado direito, terá chegado onde deveria chegar, vivido o que deveria viver e se tornado o que deveria ter se tornado, mesmo sem saber o que deveríeis ser. Nada e ninguém torna-se, se não aquilo que nasceu para ser. De fato, pode até ser que o que será não esteja hoje nos seus planos, mas construir-se sempre será tornar-se. E sendo, talvez descubra-se um dia, que na verdade, tornou-se o que sempre queria.
- Finalizamos por hoje doutor?
- Sente-se finalizada?
- Hoje não... ainda não... quem sabe amanhã, quando eu for o que devo ser.
Levantei-me da poltrona. Não foi tão difícil. Esta escrita também não foi. Ela era da mesma medida, tamanho, espessura que deveria ser, quando eu nem sabia que seria. E assim, entendi... para voltar outras vezes ao mesmo lugar, visitar minhas memórias, para construir outras histórias e assim, viver.
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