quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Cartas II

Então ela caminhou até ele e lhe deu um último primeiro beijo de anos de inexistência da própria vida. Nunca mais ela se esqueceria, porque foi deixando de viver que ela o condenara a morte.
Agarrou-lhe a loucura então... Já não desejava ser sensata. Que gritasse o mundo!! Que lhe dissessem suas palavras... Não era mais isso que ela almejava e o que almejava estava longe dos planos que tecêra para si em tempos de solidão remota.
Agasalhada e sem lucidez, tomou o corpo imóvel do amado, sentou-o na poltrona em frente a lareira, calçou-lhe as pantufas e sussurrou ao morto:
"É querido, está frio e você está muito resfriado, melhor se agasalhar."
Beijou-lhe de novo e então sentiu os lábios frios do cadáver. Parou e decidiu. "Melhor fazer-lhe um chá"  Foi a cozinha, buscou nas prateleiras e de repente saiu repetindo consigo, "Comprar açúcar para adoçar. Tenho que adoçar... Tenho que adoçar... Açúcar... Açúcar." E repetia, olhando desconfiada para os que a encaravam.
E andou...
Andou...
Andou...
Andou...
E esqueceu o caminho de volta...
Era madrugada.
Parada no cais, tirou do bolso duas moedas. Havia um pequeno barco atracado. De longe avistou o barqueiro imaginável, deu-lhe as moedas, que não viu retornar ao bolso. Ouviu do barqueiro as ordens para soltar as amarras, deitar-se no barco e dormir enquanto seguiam viajem para o lugar secreto de onde se perdera.
O barco foi... Guiado pelo barqueiro criado, a deriva no mar, em leve deslize de ondas indo e vindo.
Lá pelas tantas acordou e se viu chegando em terras desconhecidas.
"É esse o momento!" Disse decidida. Calçou então as botas, pegou a velha sombrinha e deu o primeiro passo fora do barco, no meio do mar, onde enxergara terra firme.
Sorriu enquanto afundava lentamente, segurando a velha sombrinha.
E viu as cores...
E ouviu um baile de sons surdos perfurando-lhe os ouvidos...
E degustou todos os sabores de quem sabe outros como ela...
E ao chegar ao fundo do mar onde iria habitar, chorou, beijou o piso sagrado e adormeceu para viver uma vida em outros mares, outros planos, outros... Inacessíveis e incompreensíveis a nós... Especuladores do pensamento e do sentimento alheio, melhor dizendo: Rélis mortais.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Valsa

Não gosto quando ela se aproxima assim... Mas sempre a recebo... Mesmo que não tenha vindo dessa vez a minha casa, parece que ela faz que...