Quando eu soube dessa história, quis ir mais fundo, saber das origens, detalhes, mas como papel na água, o início de tudo parecia se desfazer como que a gritar, todo o agora e enaltecê-lo como único viés de existência.
A bela moça, sobre as crostras impiedosas... os açoites de uma vida, arrastando um vestido velho, uns trapos na cintura, a faixa segurando os longos cabelos que caiam para esconder as imperfeições de um rosto surrado, porém delicado.
Caminhava pelas ruas da antiga cidade, resgatando memórias que não eram suas, mas que pareciam ter um dia lhe pertencido. Mancava os calejos de pés descalços, não lhe davam mais sapatos aos pés. Era torta! Envergaram-lhe os pesos, as chibatas, as grosserias e a estupidez que recebia de presente dos mais nobres monarcas.
Por baixo de tudo, um perfume que dava raiva, pois não acompanhava a grotesca feição que a vestia. Era rosa, era sutil e era ousada. E não havia filha da nobreza que alcançasse tal aroma, pois era de dentro dela, que vinham os perfumes... era boa.
Mas quando a pele não casa com a alma e sendo poucos aqueles que conseguem transpassá-la, sujeita-se a mendigar nas vielas e nas estradas, colhendo migalhas, vislumbres, esperanças, sombras, talvez...
Certo dia, sentada na calçada de uma bela casa florada, esperando mais uma vez que a fome a abandonasse, como todos os outros faziam, viu chegar em uma suntuosa condução, um cavalheiro estrangeiro, de traços bem definidos, porte presente e intimidador, olhar erudito escondido atrás de lentes que insistiam em conter-lhe e pela primeira vez, na sua existência, ela foi vista... e ela o viu.
Os segundos mais eternos... não fosse a chuva ameaçando gotas, teriam ficado ali. Era uma descoberta, daquelas que ninguém faz fé ou conta. De um lado a Torta, do outro o Nobre. Ele a encarou, a estranhou e a quis. Ela o viu, encarou e se permitiu.
De repente, abriu-se a porta da frente, chamaram-no, pois o esperavam já preocupados. Ele fez que ia, mas exitava. Ela pensou em correr, mas se viu presa na calçada. E então, a máxima surpresa.
- Bounjour mademoiselle! - Disse ele de forma tão leve e acolhedora que a fez se sentir pela primeira vez em muito tempo leve, como dente de leão. E tal foi a estranheza, que ela não soube o que pensar ou dizer, apenas se deixou conduzir. E embora, o risco fosse grande, era forte demais a magia que dele vinha, para que ela conseguisse dali sair... sem escapatória, ela teve de sorrir.
Gritaram-lhe novamente e ele obediente abriu os portões, dirigiu-se para dentro, mas não antes de sorrir mais uma vez, como a dizer, me espere. Assim, ela se viu cativa. Não como antes, mas como nunca, fazendo doer-lhe a alma inteira, por desejar o que não devia.
O cavalheiro ao entrar na casa, deve ter comentado da mulher na calçada e embora os de dentro da casa não lhe tivessem raiva, uma peça daquelas destoante em sua calçada, desvalorizaria a casa. A dona então, chamou a governanta e pediu-a que trata-se a Torta que ainda estava lá fora e pedisse-lhe que fosse mendigar em outras casas. Não lhe desejava mal, mas era certo que ela destoava.
A governanta foi... mas quando chegou, a Torta já não mais aguardava. Voltou então para a sala onde a família aguardava e ao contar o fato, deu-se o impessável. Em muitos anos, em muitas injustiças, depois de tanta ferida já cicatrizada, alguém quis dessa vez, saber onde estava e quem era a mullher Torta, aquela que estava na calçada.
...
Iam-se os dias e na casa tentaram ignorar o acontecido, mas o cheiro da Torta, que antes se limitava a calçada, cruzou os muros da casa e se instalou nas paredes assombrando todos, no café da manhã, no almoço, no café da tarde, no jantar.
"Onde estava?", "Quem era?", "De onde vinha?", "Será que valia?", "Ainda estava viva?", "Quem a quereria?"
Um dia, percorrendo os livros, que boa parte do tempo em sua longa vida eram também seu lar, o cavalheiro não se conteve. Abriu as portas da sala e sem dizer qualquer palavra atravessou a cidade, em busca da Torta, indo calçada por calçada, parava a favor do vento e inspirava procurando o rastro do cheiro que o embebedara. Foi gastando a sola do sapato, dizem que andou terra por terra, indo em direção a vilas, fazendas, grupos indígenas, quilombos e voltando a cada parte onde se tinha humanos, mas nada encontrava.
O perfume da Torta tinha rastro, mas nunca seguia em frente, terminava sempre se dispersando no ar, subindo e subindo, rodeando o cavalheiro e tonteando quase o fazendo levitar. Para cima, para cima... talvez seja lá!
Conta-se que até mesmo Orfeu, diante de tanto chorou o que há muito não chorava desde Eurídice e cantava: "Quisera eu, saber se sua Torta no Hades o esperava, levaria-te eu mesmo lá, para ter o prazer de vê-los encontrarem-se".
Mas o amor não é tempo e embora dele não se deva ter pressa, o coração antes tão acelerado pela expectativa de um amor jamais encontrado, cedeu as batidas e ele caiu na calçada pálido, amante, desnorteado, pensava nela e prometeu viver ainda muitas outras vidas até enfim encontrá-la fosse onde fosse, talvez em alguma calçada.